quarta-feira, 28 de julho de 2010

Só quero um presente - Rubem Alves...

Minhas netas: no dia 15 o vô vai ficar mais velho.
Bobagem, porque a gente envelhece o tempo todo; o tempo não para; é como o rio.
Só que a gente não percebe.
Mas aí chega um dia que faz a gente parar e prestar atenção: o dia do aniversário.
No dia do aniversário a gente diz: “Passou mais um ano da minha vida“.
É o dia quando os números mudam.
Quando me perguntam: “Qual é a sua idade?“ - eu respondo: “67“.
Mas depois do dia 15 a resposta será “68“.
Vocês crianças, quando pensam em aniversário, dão risada e ficam felizes.
Aniversário é dia de festa e presentes.
Toda criança quer que o tempo passe depressa para ficar mais velha, deixar de ser criança e ficar adulta.
Acham que ser criança é coisa ruim, porque crianças não são donas do seu nariz, não fazem o que querem.
Bom mesmo é ser grande.
Os grandes fazem o que querem e não precisam pedir permissão.
Criança é passarinho sem asas.
Adulto é passarinho com asas: voam bem alto e vão aonde as crianças não podem ir.
No dia do aniversário as crianças olham para frente: imaginam que está chegando o dia quando elas terão asas e poderão voar.
Os grandes, no dia do aniversário, olham para trás.
Eles têm saudades do tempo em que eram crianças.
É só depois que a gente deixa de ser criança que a gente descobre que ser criança é muito bom.
Explico de outro jeito.
Imaginem que vocês vão fazer uma viagem.
A felicidade da viagem começa antes da viagem.
A gente examina mapas, lê artigos sobre os lugares que vão ser visitados, conversa com amigos que já foram, olha fotografias. E só de imaginar fica feliz.
Depois de feita a viagem é diferente.
A felicidade ficou para trás.
Só resta ver as fotos e conversar...
Criança é quem ainda não viajou e fica feliz imaginando a viagem.
Viagem imaginada é sempre feliz.
Adulto é quem já viajou e fica feliz olhando as fotos da viagem.
Foi por isso que resolvi mexer numa caixa de fotografias velhas – fotografias do tempo em que eu era menino.
Foi o tempo mais feliz da minha vida.
Caí muitas vezes, cortei o pé com cacos de vidro (eu andava sempre descalço), me espetei com espinhos e pregos, cortei a mão com faca e serrote, fiquei doente, tive dor de dente, me queimei (eu vivia correndo; entrei correndo na cozinha e dei uma topada com a cozinheira que carregava uma panela de água fervente.
A panela virou, a água fervente entornou no meu braço e peito; doeu muito; fiquei todo empolado), martelei o dedo, fui picado por marimbondos e abelhas, pus a mão em taturanas, caí de árvores, senti muita dor.
Mas as dores passavam logo.
E a alegria voltava.
Fui um menino sempre alegre.
Tudo no mundo me encantava.
Menino, eu não imaginava que, um dia, eu seria velho...
Pois esse dia chegou.
Meu aniversário me diz que agora sou velho.
Ser velho tem vantagens.
Uma delas é ser avô.
Se eu fosse jovem não seria avô, não teria netas.
E não estaria escrevendo agora pensando em vocês – porque vocês não existiriam.
Houve um tempo em que vocês não existiam.
Vocês só existem porque eu deixei de ser criança e fiquei velho.
Vocês são, para mim, um motivo de alegria.
Acho divertido ver fotografias.
Quando eu era menino, no sobradão do meu avô – um sobradão colonial, parecido com aqueles sobradões de Ouro Preto e Paraty – havia um enorme armário amarelo (vejam só, que idéia; pintar um armário de amarelo!) em cuja gaveta estavam guardados dois álbuns de fotografias.
Eu gostava de ver aqueles álbuns.
As capas eram artísticas.
Uma, de madeira entalhada, a outra, de veludo vermelho e letras douradas.
E havia linguetas rendilhadas de metal para fechá-los.
Dentro, fotografias de homens sérios, de colarinho duro, gravata borboleta, bigodes engomados torcidos para cima.
As mulheres, todas com birotes, tranças ou cachos e vestidos rendados até o pescoço, com camafeus pendurados.
Ninguém ria.
Todo mundo era sério.
Riso, para eles, era sinal de criancice.
Adulto não ri.
E não fotografavam cenários.
Só mereciam estar no álbum os rostos empalhados das pessoas importantes.
Mas o sobradão pegou fogo e as fotos daquelas pessoas sérias viraram cinza e fumaça.
Tudo o que é sério vira cinza e fumaça...
O tempo é rio, o tempo é fogo: assim dizia um sábio muito antigo chamado Heráclito.
Naquele tempo era complicado tirar um retrato.
Não havia essas câmeras inteligentes que hoje todo mundo tem e que tiram uma foto bastando, para isso, apertar um botão. Eram necessários longos preparativos com equipamentos trambolhosos e explosivos.
Mas as fotografias que estou vendo são de tempos mais modernos.
Ainda não havia fotografias coloridas mas as pessoas já tinham permissão para sorrir e ser naturais.
Numa dessas fotos eu estou nenê de 4 meses, de bruços, sobre uma almofada.
Dessa almofada eu me lembro...
Não sei porque, mas essa foto me dá uma pitada de vergonha...
Imaginem: eu já fui nenê!
Duas outras, eu deveria ter uns dois anos: numa, concentrado, olhando um livro.
Na outra, segurando uma gaiola vazia.
Depois de adulto voltei à casa onde nasci.
Ainda está lá, conservada e cuidada.
Fotografei.
E fotografei também o quarto onde nasci.
Como vocês devem saber, naqueles tempos as crianças nasciam em casa, e quem fazia o parto era uma mulher prática chamada parteira.
Lá, naquele quarto, câmera fotográfica na mão, eu pensei: “Foi aqui que entrei no mundo...“
Aí, há um longo período sem fotografias.
Foram os anos quando meu pai, seu avô, ficou pobre.
Fotografia custa dinheiro, é coisa de rico.
Nos anos de pobreza a gente gasta o que é essencial: comida, roupa, remédio.
Uma fotografia quer dizer: melhorou de vida.
Melhoramos de vida.
Mudamos para o Rio de Janeiro.
E lá está uma foto minha: 12 anos, calça curta, assentado numa mureta de pedra, na Praia Vermelha.
Essa praia me traz muitas memórias gostosas.
Era próxima da casa onde eu morava e se encontra numa baía que tem, à sua esquerda, o morro da Urca e o Pão de Açúcar.
Foi aí que aprendi a nadar.
Aí, no meio das minhas fotos, três outras, dos seus pais e sua tia.
Também eles foram meninos.
Numa delas o Sérgio, seis anos, está empinando uma pipa.
Na segunda o Marcos, dois anos, está soprando uma bolha de sabão.
Na terceira a Raquel – um ano – está dormindo.
No dia do meu aniversário os números vão mudar, como mudam no rodômetro, aquele aparelhinho no painel do carro que marca a quilometragem.
Está lá “67“ e aí, de repente, o “7“ dá um pulo e o “8“ aparece no seu lugar.
Esse é um jeito de marcar o tempo, contando os números.
Jeito bobo.
Os números não dizem nada.
Há um verso sagrado que diz: “Ensina-me a contar os nossos dias de tal maneira que alcancemos corações sábios.“
Muita gente envelhece sem ficar sábio.
O que é um sábio?
Sábio não é quem sabe muito.
Sábio é quem come a vida como se ela fosse um fruto saboroso.
O sábio presta atenção nos prazeres e alegrias de cada momento.
E o que dá prazer e alegria não são coisas grandes, festas com bolo, bexigas e presentes.
O que dá alegria são coisas pequenas.
Por exemplo: brincar com um cachorrinho.
Balançar num balanço.
Andar na água fria de um riachinho.
Ver um ipê florido.
Ler um livro.
Armar um quebra-cabeças.
Ver fotografias antigas.
Não quero presentes comprados.
Não preciso de nada.
Um presente que vocês, minhas netas, e os meus filhos, me poderiam dar é simples: ler as coisas que eu escrevo.
Cada coisa que eu escrevo - quero que cada uma delas seja gostosa como um morango vermelho...
Escrevo para dar felicidade.
Quero que vocês sejam felizes.

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